O homem que fugiu com o rio às costas

Avatar de António Cabral

Publicado em

Nesta aldeia ainda vivem
algumas pessoas que
ao olharem para trás
se codificam nas crenças
insolúveis como areias
que umas sob as outras ficam.

Feiticeiras continuam
a dançar na encruzilhada,
algumas com dentes sãos
pilhados a moribundos.
Aqui havia um moinho,
ali um lagar de xisto,
naquele ramo de freixo
um pescador se enforcara.
Sexta-feira, dia 13,
sexta-feira, dia 13
– é assim todos os dias.

Que puta de vida esta!
– disse-lhe um dia o marido
que voou de monte a monte,
levando às costas o rio.
Ninguém diga que está bem
enquanto se desoprime.
Deixou-lhe um filho ranhoso,
outro ainda na barriga.
Quem não tem mais que deixar
a isso ao menos se obriga.

Um juiz de mini-saia
queima em Lisboa as pestanas
na pira da Casa Pia.
E em Machu-Pichu os astros
entranhavam-se na pele
dos que erguiam casas altas

para a queda ser propícia
como na Ilha da Páscoa:
reparai nos monumentos
que os homens alevantaram
tão à sua semelhança
de tempo fora de tempo.
Pablo Neruda a cantar
nas redondilhas de Lorca.

E do Cachão da Valeira
voam séculos ardidos
dos barcos desmantelados
sobre ossos remanescentes,
até do Barão de Forrester.
Sobrevoam os milhafres
a memória dos que partem
na memória dos que ficam
– isto anda tudo ligado.

Olha o mendigo ceguinho:
por dez réis de mel coado
põe-se a cantar numa esquina
a velha sempre menina,
mas que fado!, mas que fado!
Dona Antónia Ferreirinha
a ressuscitar dos mortos.

Tiazinha, o seu marido
virá daqui a cem anos
de enganos e desenganos,
virá um dia, virá
e trará de volta o rio
que tanto levou consigo.

in O homem que fugiu com o rio às costas (inédito)

Newsletter

O correio que traz poesia