Prémio Literário António Cabral 2021
E aqui moram os desesperados
que aprenderam a respirar
fora de água.
À primeira vista, são
como qualquer pessoa:
nos cafés, consultando
telemóvel, trocos, linhas da fortuna,
dando a vida de barato
em troca de noites sem susto,
menos passos à volta do poço,
um esquecimento mais dócil.
Por dentro, retalham
jugulares, retinas, o nome próprio
num derrame de sonos.
O que para outros é turismo
no País das Maravilhas
aqui monta a instável morada
do corpo, intervalada
com estâncias de hospital, paredes altas,
janelas altas, copas das árvores
recortadas contra
altas noites,
gradeamentos, comprimidos, rondas entre
quatro muros,
sapatilhas sem atilhos.
Estas mãos não são as minhas
alguém arrancou os meus dentes,
puseram microfones nos meus ossos,
vivi outras vidas antes da vida,
alguém igual a mim mora na minha casa,
esmagaram comprimidos na minha sopa,
as nuvens escrevem palavras,
a chuva desenha um mapa,
perseguem-me os olhos nos quadros,
atrás do muro passam pessoas
falando de impostos, prémios, férias,
promoções, currículos, telenovelas.
É mais que improvável
mas, se depois desta vida houver
um campo de espera, uma alfândega
das culpas,
que estes ao menos sejam poupados,
e os seus nomes não constem no livro
dos castigos, com o mesmo
vazio para todos no fim,
ou, se o nome constar,
que seja zero o saldo
do deve e do haver,
pois não merece dor na morte quem já carregou
toda a vida o inferno no sangue.
in EIRAS, Pedro. Inferno. Porto: Assírio & Alvim, 2020