A escrita é um cão a ganir à porta que se abre

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Prémio Literário António Cabral 2023

Não sei porque é que os dias
de canícula se chamam assim
— Konrad Lorenz

A escrita é um cão a ganir à porta que se abre
para lhe dar mimos, o agasalha à lareira com
um osso farto e tanto o escorraça, mesmo se é
noite e uma carnificina de neve lhe imobiliza
as mandíbulas. O cão escava fundo e tapa, ou deixa
buracos escondidos como luras, outros como túneis
de metro ligando cidades e a porte abre ou fecha
mas o cão nunca desiste das palavras que não
adestram. Se o dono o castiga, sofre mais ainda
a dor animal esgravatando o alvoroço do poema
que tarda, por mais que as orelhas no ar
farejem a música e o focinho irrequieto mostre
as narinas dilatadas de desejo por um verso,
uma constelação de linhas onde todo o universo
se banhe num caudal de palavras honestas.
O cão a caminho das palavras duras de roer.

in BRANCO, Rosa Alice. Amor cão e outras palavras que não adestram. Porto: Assírio & Alvim, 2022

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