12. O Zé do Telhado

Vista de Moledo para a Régua por Emílio Biel

Veio a descobrir-se na tasca, passado um ano, que os três galegos retidos no aljube estavam inocentes. “In vino veritas”, isto é, o vinho a pôr os pontos nos is. Dois homens a insultarem-se e um deles a revelar o crime praticado pelo outro.

Um dos egressos ficou a trabalhar no quintalório da prisão, dado o seu bom comportamento e jeito para serviços hortícolas. Tanto se dava ele com as couves tronchas que acabou por casar com a filha dum encarcerado. O segundo abalou sem destino.

O outro, aldeagante que era, entrou a pedinchar de terra em terra e boa ideia teve: mendigar, ao fim e ao cabo, é ofício que exige uma sabichonice especial. Lá se foi arranjando até ao dia em que resolveu regressar a penates. Saiu da Régua e meteu pelas faldas do Marão, seguindo o caminho dos almocreves. Querendo Santiago, havia de chegar são e salvo ao Gerês. Barbas compridas, saquitel aos ombros e forte cana na mão. Roto e sujo, claro. Quem o visse apiedar-se-ia dele concerteza, até porque ao ver gente fingia manquelitar. Ali por Ansiães parou numa encruzilhada a estudar os ventos e sentou-se. Eis senão quando, aproximou-se um homem a cavalo a quem fez alto, pedindo-lhe a esmolinha pelas cinco chagas de Cristo. O do cavalo apeou-se, mirou-o e deu-lhe um pinto1. O pobre agradeceu com uma lenga-lenga cantarolada, mas quando o outro fazia menção de se ir embora voltou à carga:

– Mais uma moeda, senhor. Vou para a Galiza e agora só tenho dois pintos.

O cavaleiro voltou-se:

– Então eu ando a tenir, hoje não consegui nada, aumentei a tua fortuna para o dobro e tu ainda me vens com chorices! Dá cá a cana, que te vou dar com ela.

O galego pôs logo a cana atrás das costas – não, não, dizia, – mas o outro sacou-lha e, ouvindo qualquer coisa chocalhar dentro, arregalou os olhos.

– Não, não. Dê-me a canita.

– Quando estou a ouvir música não gosto que me incomodem – disse o viajante que quebrou a cana contra os joelhos, saltando de dentro muitas moedas de ouro. Ante o lacrimoso mendigo que entre insultos e palavrões fazia um escarcéu dos diabos, meteu o dinheiro num alforge.

– Ladrón, ladrón!

O cavaleiro, sorridente, voltou-se para ele e disse:

– Chamaste-me ladrón? Sim, isso é verdade. Mas também é verdade que quem tudo quer tudo perde. Vai lá dizer na tua terra que quem te roubou foi o Zé do Telhado. Ao ouvir tal, o mendicante fugiu a sete pés. Livra!

  1. moeda que valia 480 réis ↩︎

in Douro – Estudos e Documentos, Outubro 2004