10. As chouriças doces

Soutelo do Douro: homens dos lagares (Quinta dos Aciprestes) por Emílio Biel

Ao fim duns tempos, juntaram-se os três grupos porque já tinham saudades uns dos outros. Foram dar a uma aldeia onde se distribuíram por quatro casas de lavoura. A um rancho numa delas deram-lhe chouriças doces com água-pé. Comeram, comeram e tanto gostaram que pediram à patroa-nai1 que lhes ensinasse a fazer petisco tão saboroso. Disse ela que sim, mas só quando acabassem de plantar o bacelo que um deles tinha ido mercar à feira de Alijó e que aliás não parecia nada mau,

– Pois não, senhor Silva?

– É muito bom, minha senhora – respondeu o interpelado que já arranhava umas coisitas de português. – A propósito vou le dar o recibo.

E deu-lho para a mão. O qual, como curiosidade aqui se transcreve:

“Recibi da mau dasenora Maria Magalhais acuantia de corenta mil reis pra cedida de dois milleiros de bazelo quele prantey no ano de mil ocho cientos corenta y un y para su seguro ledoy el presente recibo. Que firmo: Pedro Silba.”2

A patroa serviu, depois da água-pé, uma rodada de vinho, a pensar que, se o seu casal ia progredindo, isso também se devia a quem para ela trabalhava. Os galegos eram de facto bons operários, mormente no serviço mais penoso dos roteamentos, e ela apaparicava-os com as tais chouriças doces. Logo que os homens terminaram a safra do plantio, Maria Magalhães ensinou-lhes o segredo das chouriças.

– É assim, tomai lá tento – disse: dá-se ao reco, durante três dias, sopas de mel, isto é, três dias antes da matança. Depois é só fazer as chouriças como as outras e pô-las ao fumo. Os galegos ouviram e no dia de feira trouxeram para o barracão onde pernoitava a malta dos vinte e cinco um berrão taludo. Mas, como o berrão berrava, o chefe disse:

– Não dormirá connosco, pois durante a noite precisamos de descanso e cheirinho a alfazema.

E foi pô-lo numa lojinha ao lado que, como o barracão, tinha sido alugada ao prior da freguesia, a um preço baixo, simbólico – acrescentara ele, – pois, sendo os galegos bons cristãos, mereciam tal favor.

Tudo nos conformes. Trataram a alimária, segundo a receita, mataram-na, fizeram a desfeita e para as chouriças de mel aproveitaram as tripas, cheias como estavam, pois.

Antes de as porem nas varas do fumeiro sobre o lume de rama de pinho, provaram o acepipe. O chefe, que na casa onde trabalhava tinha sido elevado à categoria de capataz, franziu as beiças e o nariz, piscou os olhos e sentenciou:

– Ó compañeros, isto, a bem dizer… Oh!, ih!, uh!…, direi que é mesmo mierda. Mas, como a portuguesita afiançou que era assim que se faziam as chouriças, uhuuuu!, vamos continuar, pois…, verdade, verdadinha, são mesmo boas!

Escusado seria dizer que, durante toda a santíssima noite, nuestros hermanos andaram de esforrica. E atribuíram o contratempo ao desconhecimento da língua portuguesa, quando a patroa-nai lhes dera a receita.

  1. mãe ↩︎
  2. “Recebi da mão da senhora Maria Magalhães a quantia de quarenta mil reis pela cedência/venda de dois milheiros de bacelo que lhe apresentei (entreguei) no ano de mil oitocentos e quarenta e um, e para sua segurança dou-lhe o presente recibo. Que firmo: Pedro Silva”. Prantei (verbo prantar) usa-se no Douro com o sentido de apresentei, dei, entreguei. ↩︎

in Douro – Estudos e Documentos, Outubro 2004