3. Que frio fai lá fora

Quinta de Romarigo, do Visconde de Alijó, Douro, por Emílio Biel

Aquela noite ficou na história do Douro como das mais frias de que há memória. Os homens regelaram até ficarem inteiriçados. Um deles, a certa altura, meteu o dedo num buraco da rede e cantarolou:

– Que frio fai lá fora!

Os restantes, idem, aspas, e começaram a encostar-se uns aos outros, à procura de alguma quentura que por ali andasse perdida. Ouviam-se então ruídos, como se foram de castanholas. Os próprios sonhos ficaram encodados. De manhã, mal acordaram aos primeiros raios de sol, queriam erguer-se, mas não podiam. E, quando iam para falar, a água não corria. Até que o pescador passou pelo sítio e um deles, a quem a luz tinha conseguido entrar na boca, lá se fez entender:

– Ó meu senhor, faça a esmolinha de me dizer quais são as minhas pernas, pois quero-me levantar e não acerto com elas.

O pescador, que ia com um fueiro na mão, não teve outro remédio senão malhar a bom malhar nas pernas do suplicante.

– Vós também quereis?

– Se faz favor.

– Estas são as minhas pernas. Muito obrigado, patrón – gaitou o primeiro.

– E estas as minhas. E estas as minhas.

Repetiam-se uns aos outros, como se estivessem a ser desembrulhados. O pescador ria-se a bom rir, enquanto eles iam arribando, tem-te-não-caias. E. depois de codearem, foram-se dali à procura de trabalho que não custou a arranjar, pois eram sãos como peros e tinham boa cara. Etc.,etc., até que chegou o Verão e o trabalho começou a escassear. Continuavam unidos, porém. Para o que desse e viesse.

in Douro – Estudos e Documentos, Outubro 2004