O Grupo de Baixo ficou-se por uma quinta à beira-rio onde, de oito em oito dias, passava o barco rabelo da carreira que levava e trazia o correio. Quando, uma noite depois da ceia, estavam num terreiro a dançar a muiñeira, apareceu o feitor a entregar uma carta a um que se chamava Cortes, Xosé Cortes. Este leu, releu e começou a dar pulos de contente.
– Tenho mais um hijo! – exclamou.
Então um dos compañeros abeirou-se com passinhos calculados, tocou-lhe no ombro e disse-lhe à puridade:
– Ó boizana, tu estás aqui, passa dum ano, a tua mulher tem um filho e não dás conta que o filho não é teu?
– Como no? Então quando uma vaca tem vitelos estes não pertencem todos ao dono da vaca? Deixa-te de malandrices. O que tu tens é dor de cotovelo – concluiu, pondo-se a dançar ao toque da gaita de foles.
Ninguém teve coragem de se rir. Este Xosé era um pobre diabo, um bom-serás que não se metia com ninguém e gostava de dar uma ajudinha fosse a quem fosse. Todos no grupo o estimavam, tendo às vezes pena dele. Contava-se que andava há muito tempo desejoso de vir trabalhar para o Douro e, se mais cedo não veio, foi porque a sua mulher se opusera. Mas, como o tempo dá mais voltas do que um cachorro ao qual o rapazio chega aguarrás ao traseiro, a mulher começou a amaciar e um dia quase o impontou. A carta sobre o nascimento de mais um hijo dá a entender alguma coisa.
Contudo nos tempos em que a mulher precisava mesmo do marido e lhe bombardeava os ouvidos por dá-cá-aquela-palha, vinha ele um dia de Verín onde alguém lhe metera dentro bichinho luzidio e disparou, logo à porta de casa, na sua inocência tão límpida como sonhadora:
– Vou-me até ao Douro ganhar rios de dinheiro.
– Vais aonde? – perguntou a cara-metade.
– Ao Douro, para as vinhas, que agora é tempo das escadavadas1 e lá pagam a bom pagar.
– Quem to disse?
– Disseram-me. Não te metas. Vou com uma roga. Amanhã ao meio-dia temos de nos juntar em Chaves.
E a mulher, que não era maldosa, não senhor, moendo e remoendo girassóis:
– Pois vai, seja feita a tua vontade, mas desde já te aviso: os caminhos andam cheios de ladrôes. E se te roubam? Se te roubam o saco da merenda e ainda por cima tens de beijar o cu ao ladrão? Pode ser. Pode ser.
E o Cortes empertigado, cheio de luas:
– Já te disse: vou ganhar muita bagalhoça para ver se a nossa casa arriba.
A mulher cedeu. Logo de madrugada, o marido partiu com um lódão enfiado num saco sobre o ombro. Pouco depois ela saiu também, vestida de homem, seguindo por um atalho. Percorrida obra de meia-légua, o Cortes tem um mau encontro.
– Ponha já no chão o saco e o fueiro – bradou-lhe um corpanzil encapuzado.
Ele obedeceu, claro.
– Mas…
– Nem mas nem meio mas, seu vagabundo, ganancioso e homem sem vergonha. Volte para ao pé da sua mulher, que é aí o seu lugar. Mas antes – disse o encapuzado, baixando as calças, – antes, faço-lhe o favor de me dar um beijo no cu. Venha depressinha.
E ele obedeceu novamente, desta vez sob a ameaça de um marmeleiro. Até lhe parecia que era o marmeleiro a falar. Ao beijar o cu ao figurão, não é que este lhe descarrega uma trovoada de ventos mal cheirosos?!
E assim teve de regressar. Já em casa, a mulher recebeu-o sorridente.
– Então?
Foi obrigado a contar. Sucedera, tintim-por-tintim, como ela tinha previsto. Almoçaram e acalmaram. A Xosefa, de quando em vez, dava uns suspiros consoladinhos. Aí ele começou a ficar desconfiado. Até que a rata sábia confessou. Fora ela que se lhe atravessara no caminho. Ela, sim, conduzida pelo Anjo da Guarda. Então ele, com uma candura sonsinha, concluiu:
– Bem me pareceu, mulher, que aquele peido cheirava às berças da nossa horta.
- escavas ↩︎